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13 abr. 2024

Ouvir os restos: sobre a produção, o descarte e o resgate de objetos pessoais e afetivos

ResiduaLab

Saulo Eduardo de Castro Vieira1

O lixo persiste. Mais do que isso, ele nos fala: se pela casa se conhece o dono, pelos seus restos, também. No meio das milhares de toneladas de resíduos que as cidades produzem todos os dias, não é incomum que encontremos objetos que guardam vestígios e memórias de seus antigos proprietários.

A cidade é, assim, um arquivo vivo, o grande território onde são produzidos, circulam e são também descartados esses objetos: fotografias e álbuns de família, cartas, diários e quaisquer outras coisas que carreguem esses traços de pessoalidade. Ouvindo, portanto, não somente as paisagens, mas também os resíduos que tomam as ruas, podemos alcançar algo das tão diversas vozes e conjunturas sociais de seus sujeitos. 

A partir disso, e interessado nas manifestações materiais da memória, sobretudo dos sujeitos ditos comuns, nos últimos anos venho pesquisado tais relações, tendo recentemente apresentado o trabalho intitulado Avivar imagens: produção, circulação e destino de fotografias de família e objetos afetivos em minha finalização do curso de Especialização em Sociologia Urbana do ICS/UERJ2

O contexto específico de análise da pesquisa é o da própria efemeridade e descartabilidade desses objetos biográficos, já que esse material foi encontrado junto a vendedores no chamado “shopping chão”, em ruas e espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho toma partido deste percurso interconectando, assim, três vértices: os objetos pessoais como materialidade de uma memória doméstica e ordinária que em algum momento pode acabar sendo descartada; os sujeitos em situações diversas que, muitas vezes privados do sistema de consumo capitalista e da possiblidade de produzir seus próprios registros, sobrevivem desses objetos descartados por terceiros; e o espaço público, sobretudo a rua, como território onde são evidenciadas vulnerabilidades e privilégios, mas também onde novas narrativas podem ser construídas. 

A re-circulação desses objetos usados e descartados é uma persistência dupla: a persistência das memórias que representam, e também a persistência daqueles que os resgatam, os que insistem em sobreviver numa cidade desigual, numa sociedade feita pelo e para o consumo e o descarte. 

Desse modo, esses objetos afetivos/relacionais pessoais ganham novas camadas de significado, tendo entrelaçados também seus valores simbólicos e materiais. Podem ser colocados, ainda, como índices históricos e registros de sociabilidades diversas que revelam problemáticas de classe e trabalho, gênero, racialidade etc, atestando inclusive uma imanente importância arquivística ou podendo ser também objeto de pesquisa teórica ou prática artística, por exemplo. 

Quando abrigados em casa, esses objetos estão circunscritos a um contexto particular do indivíduo. Postos à rua, operacionalizados pela economia informal dos catadores e vendedores de coisas usadas, têm atualizados seus valores de troca, mas também se mostram artefatos de interesse antropológico, pois carregam consigo a possibilidade de desvendarmos algo da “biografia social” de pessoas comuns, de banalidades domésticas, de registros da intimidade alheia. 

Cria-se, assim, sobretudo a partir do shopping-chão, um estranho território que se situa entre o privado e o público, um lugar de inúmeras possibilidades para a memória: podemos encontrar ali um brinquedo antigo como aquele que tivemos na infância, um livro que lemos há muito tempo e do qual não lembrávamos mais, ou um velho bibelô, igual ao que a avó tinha em casa. Ainda, resguardadas as questões éticas que envolvem a imagem e as informações privadas, também a fotografia de uma família, a correspondência de um amigo, um diário juvenil ali encontrados tornam-se coisas particulares que podem encontrar eco nas mãos de outras pessoas que com elas se identifiquem.

Dividida em três partes, esta pesquisa incluiu também o registro de ensaios visuais que dialogam com cada uma delas. Essas fotoetnografias evidenciam-se, pois, como conteúdo indispensável ao seu desenvolvimento e entendimento. Na primeira parte, a intimidade doméstica é ilustrada por meio de fotografias de interiores residenciais publicadas em sites de anúncio de venda e aluguel de imóveis, e também de registros feitos diretamente por mim na ocasião em que visitei alguns apartamentos em busca de uma nova moradia e encontrei cenários que representativos da pesquisa teórica que empreendia. Na segunda parte, apresento os registros feitos durante minhas expedições por diversos locais da cidade onde os vendedores do shopping-chão montam suas lojas, e também registros de objetos eventualmente encontrados jogados diretamente na rua, sobretudo durante os anos 2022 e 2023. Por fim, na terceira parte, apresento imagens de uma seleção desses objetos afetivos, correspondências, álbuns e fotografias de família. Todas as imagens mostradas aqui são de minha autoria.


I. Intimidades domésticas

Imagens 1 e 2: marcas de quadros e fotografias que ocupavam a parede de um apartamento e estante com álbuns, fotos, documentos e outros objetos pessoais deixados em mudança. Imagens 3 e 4: objetos pessoais deixados em mudança.

Os objetos pessoais são uma face de nossa existência, de nossas experiências particulares, sendo ao mesmo tempo testemunhas e operadores do cotidiano familiar e tendo o ambiente doméstico como abrigo. Dentre todos os objetos com os quais convivemos no cotidiano, quais são aqueles que mais informam sobre nós? Quais seriam aqueles que escolheríamos levar conosco para uma nova vida em outro lugar, se tivéssemos que escolher? 

Seja por qual motivo for, a mudança de casa implica ao proprietário dessas coisas, ou ao responsável por seu espólio, que as enfrente: continuar com elas ou descartá-las. Aqui, as fotografias mostram ambientes domésticos na fronteira de sua ocupação e desocupação, as marcas que deixam no espaço, as coisas que vão sendo deixadas para trás.

Na ocasião em que fiz estas fotos, muito me inquietou pensar no destino que teriam essas coisas, ali abandonadas. Quem seriam seus proprietários, qual seria sua história? Teriam falecido? Deixando descendentes, estes não se interessariam mais pelos registros da família? Ou seriam pessoas que se mudaram e não puderam levar consigo suas lembranças?


II. A vida nas calçadas

Imagens 5 e 6: fotografias e objetos pessoais de família encontrados primeiro em caçamba e, depois, parte do mesmo acervo encontrado com vendedor em rua do bairro de Copacabana. Imagens 7 e 8: shopping-chão que ocorre aos sábados na Praça XV. 

No comércio de usados, mais especificamente no shopping-chão, estas coisas podem ser resgatadas para uma nova vida. Chegam ali recebidas como doação ou são garimpadas diretamente nas lixeiras e caçambas de entulho das ruas já que, numa sociedade tão desigual como a brasileira, esse primeiro descarte pode não ser o fim definitivo das coisas. 

Esse universo de coisas tão díspares, colocadas lado a lado, chamou minha atenção em diversos sentidos, além, claro, da questão social que envolve seus participantes. Primeiro, pela subversão do uso do território: o shopping-chão povoa as calçadas e praças de um modo muito particular, dinâmico, paradoxal. Segundo, pela questão da produção de bens de consumo, de coisas que se tornam lixo e depois novamente mercadoria. No caso do shopping-chão, essas mercadorias resgatadas são ao mesmo tempo uma consequência dos ciclos de consumo e uma resistência, um confronto ao sistema de produção. E, terceiro, o shopping-chão pode ser entendido como uma camada que se estende-se pelo território povoando-o de significados: o que chamei de shopping-atlas. Cada loja, em cada dia, sempre vai estar diferente, podendo-se encontrar coisas aleatórias, como em um gabinete de curiosidades onde sempre haverá algo novo a ser descoberto, como os objetos biográficos. Nesse sentido, o shopping-chão é um lugar de memória.


III. Arqueologia de afetos alheios

Imagens 9 e 10: álbum de fotografias e registros de família, customizado com colagens, mensagens, cartões, convites, além de fotografias de diversos períodos. Adquirido no shopping-chão da rua do Catete. Imagens 11 e 12: fotografias avulsas e páginas de álbuns adquiridos no shopping-chão da Praça XV. 

A materialidade dos objetos biográficos dá algo a ver do que foram os sujeitos que os produziram e mantiveram. Podem, portanto, ser considerados índices históricos com interesses culturais e antropológicos, informando também sobre cotidianos e questões socioeconômicas. A maior parte das fotografias encontradas no shopping-chão representa uma classe média e suas celebrações de aniversários, batizados, casamentos, reuniões familiares e viagens. Sobretudo quando mais antigos, é mais difícil encontrar registros de pessoas racializadas, por exemplo.

Esses objetos são, ainda, vestígios que podem ser articulados de modo a contribuir para a construção de uma memória das sociedades de seu tempo, criando novos sentidos de coletividade e representatividade. Um modo possível de se proceder a isso é por meio das artes visuais, como mostrado na pesquisa. Diversos artistas se debruçam sobre arquivos e materiais desse tipo para produzir seus trabalhos, envolvendo as mais diversas questões sobe o tema, resgatando histórias que ficaram às margens e reivindicando novos lugares de fala e protagonismos.

Por fim, esses objetos biográficos frente ao desenvolvimento tecnológico e ao avanço do digital são testemunhos das mudanças radicais que vivemos nas últimas décadas, e que ainda nos levará a lugares desconhecidos. Essa transformação tecnológica mostra algo da própria transformação das famílias e da sociedade. 


1 Mestre em Artes, Urbanidades e Sustentabilidade pelo PIPAUS/UFSJ. Especialista em Sociologia Urbana pelo ICS/UERJ. Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP. Realiza pesquisas interdisciplinares a partir das ciências sociais, artes e arquitetura e urbanismo, envolvendo principalmente os seguintes temas: espaço urbano, pequenas cidades e ruralidades, arquivos e coleções, artes plásticas. Contato: saulovie@gmail.com

2 Meus agradecimentos à professora Patrícia Lânes, orientadora e grande incentivadora dessa pesquisa.