Catadores e catadoras organizados representantes de diversas cooperativas da região metropolitana do Rio de Janeiro e articulados ao Movimento Eu Sou Catador (MESC) fizeram uma manifestação na sede da prefeitura do Rio na segunda-feira (06/08/2018). Uma comissão de catadores foi recebida por representantes da secretaria municipal do meio ambiente, e entregou um ofício endereçado ao prefeito com as seguintes demandas das cooperativas de materiais recicláveis representadas pelo MESC:
- Contratação de cooperativas de catadores para a realização da coleta seletiva
- Pagamento pelos serviços ambientais prestados
- Ampliação/universalização da coleta seletiva solidária
- Transparência nos números, investimentos e serviços operados pela Comlurb
- Cumprimento do acordo setorial sobre logística reversa e cobrança dos grandes geradores poluidores e produtores de embalagens
Com o ato, catadores e catadoras cobravam ações em cumprimento dos seus direitos por parte do prefeito que, de acordo com os representantes, vem ignorando a categoria.
O prefeito, a coleta seletiva e a reconfiguração da gestão de resíduos no Rio
O atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, eleito em 2016, é bispo licenciado da Igreja Universal e recentemente foi alvo de um pedido de impeachment, não aprovado pela Câmara dos Vereadores, e de uma representação no MPE acusado de crime de responsabilidade e improbidade administrativa por conceder vantagens a grupos evangélicos, após a divulgação na imprensa de áudios de uma reunião no Palácio da Cidade com 250 pastores e pré-candidatos das próximas eleições em outubro. No evento, Crivella oferecia isenção de IPTU e serviços de saúde como cirurgias aos fiéis da rede de pastores que constituem sua base eleitoral. Ganhou notoriedade na ocasião Márcia Nunes, assessora do prefeito apontada por ele como responsável por garantir os benefícios e resolver os problemas dos indicados.
O acesso ao prefeito para escuta das demandas não é o mesmo, entretanto, para todas as categorias. Com cartazes perguntando “Marcia, o que houve com a coleta seletiva?”, os catadores faziam referência ao episódio, numa crítica à atuação da prefeitura e ao exercício da política institucional de modo personalista, como instrumento de um projeto de poder de grupos religiosos e seus empreendimentos. Apesar de referida como assessora do prefeito, Marcia constava como servidora lotada na Comlurb, empresa de limpeza urbana do município, responsável pela gestão de resíduos da cidade.
A coleta seletiva no Rio de Janeiro apresenta índices bem poucos expressivos. O plano municipal de resíduos, elaborado pela gestão anterior em 2016, aponta que do total de resíduos coletados pela Comlurb e enviados à Central de Tratamento de Resíduos (CTR-Rio) em Seropédica, apenas 0,5% compreendia o fluxo destinado à coleta seletiva para reciclagem. A inauguração da CTR-Rio foi ponto estratégico da reconfiguração da gestão de resíduos no estado, ao viabilizar a desativação do Aterro de Jardim Gramacho, principal destinação dos resíduos da região metropolitana do Rio desde a década de 1970. No aterro de Gramacho, conhecido como um dos maiores da América Latina, trabalhavam cerca de 1.500 catadores diariamente, coletando recicláveis e reinserindo estes materiais novamente nos circuitos da economia industrial da reciclagem (saiba mais sobre o trabalho dos catadores na economia da reciclagem em Jardim Gramacho aqui).
Catadores nas políticas públicas: da Rio+20 ao Pós-Golpe
O fechamento dos lixões e aterros irregulares, como parte do marco regulatório representado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, sancionada em 2010 durante o governo Lula, tinha o objetivo de inclusão social dos catadores de recicláveis com a formalização dessa atividade produtiva através do fomento e incentivo às cooperativas e organizações da categoria.
No entanto, a realização da Rio+20, inaugurando o ciclo de megaeventos internacionais que marcariam os anos seguintes, criou o imperativo de encerramento dos aterros do estado como medida urgente, ficando como promessa de uma etapa posterior a plena estruturação e ampliação dos sistemas municipais de coleta seletiva com a participação das cooperativas.
Em 2012, às vésperas da Rio+20, o aterro de Jardim Gramacho foi desativado após um longo e complexo processo de negociação com as organizações dos catadores da localidade, representadas pela Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (ACAMJG) em conjunto com outras organizações governamentais e não governamentais (saiba mais aqui).
Os representantes da categoria que atuaram no processo de encerramento do Aterro de Jardim Gramacho faziam parte da composição da coordenação estadual do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis MNCR- RJ, e a mobilização conseguiu o pagamento de indenização pelos serviços prestados no aterro para cada catador e o fomento para estruturação de um polo de reciclagem com cooperativas locais, em uma difícil articulação dos governos municipal, estadual e federal. Essas seriam medidas emergenciais e de curto prazo, e a efetiva implementação da gestão integrada de resíduos prevista pela PNRS ainda deveria ser um desafio pela frente.
Da abertura da Rio+20 até o encerramento da Copa do Mundo de futebol em 2016, o país passa de um período de efervescência, crescimento econômico e desenvolvimento social a um cenário incerto e desolador marcado por um golpe de Estado que interrompe a gestão do Partido dos Trabalhadores e seu projeto de governo com o impedimento controverso da presidenta Dilma Rousseff.
O Rio de Janeiro foi o estado mais atingido, indo da cidade que recebia o maior fluxo de investimentos no país a uma grave crise econômica e fiscal, com servidores públicos meses sem pagamento, aumento do desemprego e da criminalidade urbana, o ex-governador Sérgio Cabral preso por corrupção e o Estado atualmente sob uma intervenção federal comandada pelo exército como política de segurança pública.
A ruptura democrática marca ainda a mudança de projeto para o desenvolvimento do país, com o executivo federal sob a gestão de Temer orientado por políticas neoliberais e impopulares, forçando reformas que comprometem direitos de trabalhadores rurais e urbanos, populações tradicionais e demais comunidades étnicas e minorias identitárias, adotadas sem diálogo com movimentos sociais e a participação da sociedade civil e suas demandas.
Para a categoria dos catadores, isso se reflete em significativa redução ou perda de apoio, incentivo e fomento por parte do governo federal, com o fim de editais, linhas de crédito por bancos públicos com financiamento para estruturação de cooperativas, e desmantelamento dos órgãos institucionais, como o comitê interministerial, criados para diálogo e participação da categoria na construção de políticas públicas voltadas para inclusão socioprodutiva dos catadores.
Organizações de catadores e estratégias políticas
Mesmo com a existência de dispositivos legais em favor da categoria, como o decreto federal 5.940 de 2006, a lei federal 12.305 de 2010 e outros, e a participação das organizações de catadores na operação da coleta seletiva prevista no plano municipal de gestão integrada de resíduos, a situação das cooperativas é de grande dificuldade.
Apesar da falta de transparência e da ausência de dados oficiais detalhados, representantes presentes no ato da prefeitura relataram escassez de material, diminuição de caminhões da coleta, queda no número de cooperados, baixa remuneração, com galpões fechados em certos dias e com pessoas em casa sem trabalhar. Por outro lado, a coleta informal e o número de catadores autônomos e carrinheiros nas ruas aumentam, assim como vendedores ambulantes e pessoas em situação de rua.
Esse contexto coloca inúmeros desafios à organização dos catadores e é na conformação desse cenário que em 2016 surge o Movimento Eu Sou Catador (MESC). Parte de seus representantes vem da atuação política e do trabalho de mobilização das organizações em Jardim Gramacho, em articulação com diversas cooperativas no Estado do Rio e em outras regiões do país. A criação do movimento reflete tanto um senso de urgência pelo fortalecimento da mobilização dos catadores e cooperativas do Estado, como a existência de divergências entre as leituras e percepções das distintas entidades de organização de catadores e seus representantes quanto às estratégias e formas de atuação para a garantia das condições de trabalho para a categoria.
Diante da estrutura de oportunidades políticas para os catadores nesse cenário, alguns representantes vem apostando na frente de atuação através da inserção na política formal, com a disputa de cargos legislativos e lançamento de candidaturas para vereador e deputado estadual. A criação de novas instâncias de representação e articulação dos catadores, como o movimento, se apresenta como outra estratégia no repertório de ação da categoria. Distintas frentes de atuação não são excludentes entre si, e dependem das configurações nas quais indivíduos e grupos estão inseridos e em relação, das percepções acerca dos contextos e da definição de estratégias para alcance dos objetivos almejados.
Uma das divergências entre as distintas representações de catadores no estado se refere aos acordos setoriais e à definição dos parâmetros legais envolvendo a regulamentação da atuação das empresas e associações empresariais na gestão integrada de resíduos. O MESC apresenta como sua principal bandeira a luta pela implementação do pagamento pelos serviços de logística reversa prestados pelos catadores aos grandes produtores e consumidores de embalagens, de acordo com o princípio “poluidor pagador, despoluidor recebedor”.
Com a escassez de material nas cooperativas se refletindo na baixa remuneração dos catadores, a implementação de créditos de logística reversa, com a cobrança obrigatória dos grandes geradores pelo serviço prestado pelos catadores de retirada de materiais do meio ambiente e sua recolocação no mercado, seria um mecanismo de fortalecimento da categoria, de inclusão social e de promoção da viabilidade econômica das cooperativas.
Em 2017, foi sancionada pelo governador Luiz Fernando Pezão a lei 7.634, de autoria do deputado Carlos Minc, que obriga os grandes geradores de resíduos sólidos a priorizar as cooperativas ao descartarem materiais que podem ser reutilizados. Catadores do Rio de Janeiro, articulados pelo MESC, vêm pressionando e cobrando do poder público o cumprimento das leis existentes.
O desenvolvimento de tecnologias digitais e de mecanismos gerenciadores para pagamento e cobrança de créditos de logística reversa, envolvendo cooperativas e protagonizado por catadores, é visto como uma estratégia para operacionalizar a efetiva gestão integrada de resíduos. E contribuiria para a regulamentação do mercado, com a incorporação dos dados da atividade das cooperativas e dos grandes geradores, possibilitando maior controle social sobre a gestão de resíduos e o mercado da reciclagem, além de proporcionar melhores condições de trabalho e renda para os catadores organizados.
A política catadora em ação
Os catadores e catadoras deram o prazo de 15 dias para terem retorno de suas demandas pela prefeitura. Em caso de descumprimento, novas mobilizações e ação direta devem ser planejadas. As organizações de catadores têm o papel de se mobilizar e articular frentes diversas que façam ecoar suas reivindicações, fazendo valer seus direitos e sua voz na arena pública. Os desafios são grandes mas os diversos caminhos para isso parecem passar necessariamente pelo aprofundamento da organização política e reafirmação do catador enquanto categoria profissional, ator econômico, agente ambiental e sujeito político.
Em coro e batendo palmas, segurando cartazes e bandeiras, catadores do Rio entoavam o canto afirmativo na porta da prefeitura: “O catador organizado jamais será pisado!”.
* Esse texto foi publicado originalmente no site ResiduaLogics (www.residualogics.com) em 9 de agosto de 2018, com o título “Organização de catadores, gestão de resíduos e política no Rio de Janeiro”.