Uma pequena fábula dos nossos tempos. Um belo dia um usuário do instagram descobriu um paradisíaco lago azul, na cidade russa de Novosibirsk. Imediatamente, a água cristalina pareceu o local perfeito para cliques e poses a serem exibidas na rede social. As imagens viralizaram localmente, angariando curiosos em número cada vez maior.
A profecia se concretizava, o lago tinha realmente uma profunda vocação instagramável. Cada vez mais milhares de pessoas em busca de um cenário perfeito para álbuns de casamento, aspirantes a influencer tentando a sorte da viralização ou mesmo amigos se reuniam no local para partilhar bons momentos e produzir memórias visuais desfrutando daquela bela paisagem.
No entanto, as aparências podem ser enganadoras e tempos depois veio a descoberta. O incrível lago, apelidado até de “Maldivas siberianas” não passava de uma barragem, em bom brasileirês, um “lixão” de resíduos tóxicos provenientes de uma termelétrica da região. O azul deslumbrante da água é fruto de uma reação química e nele encontram-se óxidos metálicos nocivos à pele e à saúde humana. A popularidade crescente do local levou a Siberian Generating Company a tomar a decisão de fechar as estradas que levam ao lago.
A fábula do lixão instagramável descortina uma característica fundamental da toxicidade que permeia a nossa vida, a invisibilidade. Resíduos tóxicos são produzidos em escala monumental diariamente ao redor de todo o globo pela atividade industrial. Não há indústria sem resíduo. Mas sua característica invisível permite que, assim como os instagrammers do lago tóxico, a gente conviva de boa e desavisadamente numa íntima relação com eles em nossa vida cotidiana.
A invisibilidade dos resíduos contrasta com a intensa visibilidade a que somos submetidos através de redes sociais como esta. O desejo de exibição, de ser visto e “curtido”, e seu oposto complementar, a curiosidade de ver, de saber e de se deixar influenciar pela imagem do outro formam a estranha receita capaz de gerar situações como a do lixão instagramável.
Bem mais do que excentricidades ou idiossincrasias de pessoas deslumbradas numa distante cidade russa, vale sublinhar a visibilidade, através do par exibicionista/voyeur, como uma dimensão constitutiva das nossas subjetividades contemporâneas, que “enganchadas” nos aplicativos de interação social via compartilhamento de imagens (e muitos outros dados), tornam-se engrenagens de uma economia próspera e bilionária alimentada pela nossa atenção (e nosso tempo).
Vale dizer, mesmo após a descoberta da toxicidade, os usuários da rede não deixaram de frequentar o lago em busca de imagens potencialmente influenciáveis. Uma pista para entender esse tipo de comportamento é a dimensão “viciante” que atravessa e estrutura nossa relação com redes sociais como o “instagram”, fazendo do desejo de postar e do desejo de checar as atualizações do seu feed “quase um tique”.
Se interessou por essa abordagem das redes sociais? Ela se baseia no livro “Quase um tique: economia da atenção, vigilância e espetáculo em uma rede social”, de Anna Bentes, pesquisadora do medialab UFRJ, que será lançado hoje 09/11 às 17h pela Editora da UFRJ. Para assistir à live de lançamento e saber mais do livro, acesse o canal do youtube da editora.
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As informações do caso do lago tóxico de de Novosibirsk foram retiradas da matéria de Óscar Tévez para o El país Brasil.