Letícia Andrade Batista Silva (PPGHCS/COC/FIOCRUZ)
Este texto debate as diferentes perspectivas teóricas sobre o conceito de infraestrutura como parte sociotécnica e componente material das cidades.
Temos como ponto de partida os textos de Brian Larkin1 e Francesca Pilo, também Rivke Jaffe2 para observar a extensão do significado de infraestruturas na perspectiva da antropóloga Maria Raquel Passos Lima e da historiadora ambiental Lise Sedrez. Assim discutimos como as infraestruturas assumem outras formas, corporificadas em pessoas e em meios do ecossistema urbano.
O objetivo do texto é esclarecer as diferentes perspectivas sobre o conceito de infraestruturas para além dos serviços básicos da cidade: desde as formas materiais, como elas operam no imaginário social, o modo pelo qual exercem influência na composição do espaço urbano, no modo de vida dos cidadãos, como a natureza é transformada em infraestrutura.
Acreditamos que a ampliação o conceito original de infraestruturas chegamos à possibilidade de alcançar novos significados ao conceito, até mesmo entender como pode ser um conceito útil de análise para outras áreas do conhecimento. Com efeito, queremos observar a extensão do significado das infraestruturas ao incrementar algumas perguntas: O que podemos nomear como uma infraestrutura? Os corpos humanos e não humanos, os lugares, a própria natureza pode ser considerada uma infraestrutura?3
Nas ciências sociais e na antropologia, a palavra infraestrutura é associada a explicação dos fenômenos conformadores das estruturas sociais, econômicas e culturais da sociedade. No sentido ontológico, infraestrutura é sinônimo de sustentação. Nos remete a teoria da estrutura e superestrutura de Karl Marx.
Já nas cidades, as infraestruturas correspondem aos meios necessários para manter os diferentes sistemas em funcionamento. Por esta linha de raciocínio, inferimos que as infraestruturas correspondem a questões técnicas e físicas do meio urbano. Elas podem ser visíveis e invisíveis, estarem acima do solo ou abaixo dele: são os cabos de energia, os canos, as pontes, os trilhos, as estradas e demais “trocas por meio do espaço”4, composições de aço, concreto, vidro, isto é, moldam o caráter físico das cidades a e interferem na funcionalidade urbana.
As infraestruturas foram criadas prioritariamente para atender necessidades materiais, no entanto, não deixam de existir em outros planos, como o simbólico. Elas ocupam lugar no imaginário, no desejo. As infraestruturas podem ser um signo da novidade, da modernidade. Os prédios cada vez maiores, ruas mais largas, transportes mais rápidos, mais econômicos, usando de combustíveis de fontes renováveis, abertura de caminhos, novas estradas, as ideias conformando as infraestruturas são capazes de seduzir, a levar a crença de que os meios materiais guiam de maneira absoluta a melhorias no presente ou no futuro. As infraestruturas supririam um suposto atraso.
No entanto, existe um contraste entre o desejo e a realidade. Na prática, as infraestruturas estão associadas aos espaços e a produção de novos espaços, como consequência elas são capazes de manter, aprofundar ou produzir desigualdades sociais, as relações de poder, de classe, até mesmo de normatização de corpos. Isso porque as infraestruturas chegam, não para todos e nem da mesma forma. Caímos em uns “enganos compósitos” quando não olhamos o efeito das infraestruturas no simbólico e no corpo social. Dentro de sistemas sociais específicos a infraestrutura pode existir para além do caráter técnico e responder a meios de controle, de exclusão social5.
No plano complexo da materialidade da construção do meio urbano existe o cruzamento entre a expectativa e o que as infraestruturas alteram de fato. O exemplo disso está no estudo de caso de Von Schnitzler na África do Sul em torno da instalação de hidrômetros. A função do hidrômetro é medir a quantidade de água usada em determinada residência ou prédio. A priori a medição mostra se há desperdício de água, a quantidade de água usada por cada morador, por exemplo, isso se estivermos discutindo apenas o caráter técnico. Por outro lado, regula também as ações dos sujeitos submetidos à contagem. Os números subindo indicam a quantidade de vezes que a torneira foi aberta, a liberação de válvulas para escovar os dentes, tomar banho, cozinhar. Como consequência, produz sujeitos preocupados com a marcação do hidrômetro que regulamentam as ações do cotidiano para caber nos números do ponteiro do relógio.
Sem o hidrômetro, a população fica mais livre para usar a água. Não se instala apenas o hidrômetro, mas um aparelho regulamentador do cotidiano. Ele representa a um novo serviço, em seu entorno a expectativas dos moradores. Junto com o hidrômetro chegam também: as contas de água, a ameaça do corte do fornecimento, o serviço de fornecimento de água que pode ser contínuo ou não.
Caso similar pode ser observado na instalação de relógios de luz em favela no Rio de Janeiro.
As favelas são lugares, por vezes, usados como exemplo de carência de serviços essenciais básicos. Costumam ser tratadas como territórios de ausência em que os serviços de água, de esgoto, saneamento básico, luz e recolhimento de resíduos sólidos funcionam de maneira precária ou não chegam. Em muitos casos, é comum a ligação clandestina na rede, chamados de “gatos de luz” para garantir o acesso à infraestrutura básica. Por causa disso, recai sobre os favelados o estigma de pessoas que não pagam por serviços e usufruem livremente da infraestrutura enquanto terceiros pagam as contas. Portanto, a entrada do marcador de luz nos locais significava o fornecimento de energia para as casas de modo a substituir os “gatos” até mesmo a chegada de luz a pontos antes inacessíveis.
Com o efeito da rede elétrica, os moradores podem sair da categoria da informalidade ao possuírem a conta de luz. O relógio de luz funciona como objeto material marcador de cidadania acompanhado da conta de luz como comprovante de residência e de cidadania. A conta funciona como uma espécie de identificador de um bom cidadão, o pagante. Contudo, o pagamento subverte a relação entre Estado e cidadãos. A estabilidade do serviço elétrico deveria ser estendida a todos, independente da relação de pagamento. O Estado relega a infraestrutura básica quando deixa a iniciativa privada comandar a garantia do serviço.
A combinação entre os relógios de água e de luz são a materialidade da infraestrutura, de um serviço programado, de cabos e canos que viajam por quilômetros até a casa ou estabelecimento consumidor.
Nos dois casos, tanto o hidrômetro e a luz, representam a chegada de novas infraestruturas. O acompanhamento dos efeitos está na obrigação de pagar pelo serviço e na vigília do relógio. Os relógios de luz e de água são ao mesmo tempo, a combinação da infraestrutura material e simbólica, da técnica, da função urbana e de políticas públicas na cidade comandada por práticas neoliberais. Não podemos deixar de perceber como a gestão das infraestruturas urbanas tem efeito direto no exercício da cidadania e na construção de políticas públicas6.
Os relógios de luz e de água transformam a chegada de energia no meio urbano em algo visível aos moradores. Por outro lado, existe a face dos serviços cujo objetivo é ocultar, as infraestruturais residuais. Em meio a toda rede tecnológica (caminhões, guindastes, a engenharia) da gestão da cidade moldadas para o desaparecimento do lixo, ou como Maria Raquel Passos Lima denomina de “tecnologias do ocultamento”, a autora investiga a face do lado humano, o trabalho dos catadores de lixo ou “o avesso do lixo”, título da tese transformada em livro7.
Lima demonstra que o lixo não permanece oculto a todos os campos de visões. Ele aparece em abundância no lixão de Jardim Gramacho em Duque de Caxias, onde a pesquisadora realizou trabalho de campo e entrou em diálogo com os catadores de materiais recicláveis no local.
Nas falas fica evidente os efeitos do trabalho no corpo e como as práticas de catar, transportar e separar os resíduos exigem o condicionamento e saberes intrínsecos ao movimento do corpo, naquele lugar os corpos são a infraestrutura de trabalho entre os barracões, lonas e as grandes estruturas de funcionamento do lixão. As mãos, o olhar apurado exerce as trocas do lixo de um lugar sem valor a valorização por meio do trabalho, da reciclagem.
Afora todo o caráter rítmico do trabalho, os corpos são parte das narrativas de vida dos catadores de Jardim Gramacho. Nas palavras emergem histórias complexas de vida, na maioria intercortadas pela condição racial. Os homens e mulheres ali em Gramacho são de maioria pretos (as) e pardos (as). Dessa maneira, não há como ignorar a estrutura racial e as implicações do racismo da sociedade brasileira na construção da identidade dos catadores. A posição fica mais evidenciada no depoimento da catadora chamada de Laura. Ela relembra as antigas condições de trabalho no lixão e compara a experiência vivida no local chamado de rampa aos tempos da escravidão.
A fala aproxima o passado escravocrata do Rio de Janeiro e a trajetória de vida de Laura e seus companheiros. Quando revisita a memória, Laura descreve situações de humilhação com os trabalhadores pelos guardas locais, o atravessamento dos mangues para chegar o lixão, os guardas que colocavam fogo nas lonas, o sentimento de exploração. A escuta dos depoimentos revela o lado humano da infraestrutura e o lugar outrora creditado pela ausência foi sendo preenchido de sonhos, de labor, do suor, pela própria subjetividade das pessoas no mundo do trabalho presente ali. Olhar o lixo pelo avesso, em prática, significa ouvir os catadores e perceber como o lixo está amarrado a narrativa de vida, de lugares e de valorização de espaços e das coisas.
Nas descrições dos lugares, na escuta das falas presentes no livro, podemos observar outro componente da tecnologia do ocultamento: o uso de territórios costeiros no Rio de Janeiro como vazadouros ou lixões ao longo da história. Os corpos d’água (as praias, rios, córregos, pântanos) eram mobilizados como agentes de limpeza urbana pelos moradores da cidade8. Desde a fundação da cidade, existe uma construção da relação entre sociedade e natureza no Rio de Janeiro em que certos espaços eram associados a sujeira, principalmente pelo mau cheiro, como os mangues e para lá seguiam outras espécies de impurezas produzidos pelos habitantes da cidade como os rejeitos humanos e animais mortos9.
Percebemos o uso dos mangues como parte das infraestruturas residuais desde a construção do primeiro grande território aconteceu no século XIX, a Ilha de Sapucaia próximo à Ponta do Caju, designada como vazadouro em 1865. A região costeira seguiu sendo usada como territórios de lixo as margens da Baía de Guanabara no sentido Baixada Fluminense. A Ponta do Caju (1933), o Aterro do Caju (1940-1970), o Aterro das Missões (1970-1976) e por fim o Aterro Sanitário de Jardim Gramacho conhecido como Lixão de Jardim Gramacho criado em 1976 e fechado em 201210.
Nesse meio tempo, a cidade cresceu em espaço, demografia, houve a perda do status político de capital, a integração do Estado da Guanabara, a criação da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em meio a todos os processos, os lixões ou vazadouros de lixo são caleidoscópios para compreender as mudanças tecnológicas, na gestão das infraestruturas residuais, os processos socioecológicos do Rio de Janeiro.
O uso do corpo d’água da Baía pela cidade como fossa de esgoto e de lixo resultou no ambiente de degradação humana e ambiental, quadro atual atravessado pela cidade, apesar dos planos de despoluição e do “desfazer” da infraestrutura do lixão11. Manter a cidade limpa de um lado resultou em décadas de destruição do ecossistema de outro.
Quando Laura compara a sua situação com a escravidão, retoma a história de exploração de trabalho, portanto, do corpo dos trabalhadores no qual o Rio de Janeiro foi construído. Laura traz em sua fala os sujeitos que sofrem a ação nesta narrativa de cidade, que constroem, que atuam como agentes ambientais e são explorados dentro da relação de trabalho.
Na argumentação procuramos demonstrar como as infraestruturas estão presentes na cidade para além da questão material e tecnológica. Pensamos nelas como a combinação de fatores tecnológicos sem excluir outros elementos como as pessoas e a natureza.
BIBLIOGRAFIA
AMADOR, Elmo do Silva. Baía de Guanabara: ocupação histórica e avaliação ambiental. Rio de Janeiro: Editora Interciência, 2013.
LARKIN, Brian. A poética e a política da infraestrutura. Ano 24, Volume 31(2), 2020. 28-60.
LIMA, Maria Raquel Passos. O Avesso do lixo: materialidade, valor e visibilidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021.
LIMA, Maria Raquel Passos. Infraestruturas residuais: colonialismo na gestão de resíduos e a política catadora. Estudos Avançados 37 (107), 2023.
MACHADO, Giselle Cardoso. Da Ilha de Sapucaia ao Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho: a criação de territórios do lixo da cidade do Rio de Janeiro como expressão de segregação espacial. Dissertação (Mestrado em Geografia). Departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012.
MARTINS, William de Souza; ANDRADE, Marta Mega de; SEDREZ, Lise F. (org.) Corpo: Sujeito e objeto. Rio de Janeiro: Editora Ponteiro, 2012.
PILO, Francesca; JAFFE, Rivke. Introduction: The Political Materiality of Cities. City & Society, City & Society, Vol. 32, Issue 1, pp. 8–22, 2020. DOI:10.1111/ciso.12252.
PRITCHARD, Sara B. Toward an Environmental History of Technology. In: ISENBERG, Andrew C. The Oxford Handbook of Environmental History. Nova York: Oxford University, Press, 2014.
Notas de rodapé
1 LARKIN, Brian. A poética e a política da infraestrutura. Ano 24, Volume 31(2), 2020. 28-60.
2 PILO, Francesca; JEFFE, Rivke. Introduction: The Political Materiality of Cities. City & Society, City & Society, Vol. 32, Issue 1, pp. 8–22, 2020. DOI:10.1111/ciso.12252.
3 PRITCHARD, Sara B. Toward an Environmental History of Technology. In: ISENBERG, Andrew C. The Oxford Handbook of Environmental History. Nova York: Oxford University, Press, 2014.
4 LARKIN, Brian. A poética e a política da infraestrutura. Ano 24, Volume 31(2), 2020. 28-60.
5 Idem.
6 PILO, Francesca; JEFFE, Rivke. Introduction: The Political Materiality of Cities. City & Society, City & Society, Vol. 32, Issue 1, pp. 8–22, 2020. DOI:10.1111/ciso.12252.
7 LIMA, Maria Raquel. O Avesso do Lixo: materialidade, valor e visibilidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021.
8 SEDREZ, Lise F. O Corpo na História Ambiental: de corpos d’água a corpos tóxicos. In: MARTINS, William de Souza; ANDRADE, Marta Mega de; SEDREZ, Lise F. (org.) Corpo: Sujeito e objeto. Rio de Janeiro: Editora Ponteiro, 2012.
9 AMADOR, Elmo do Silva. Baía de Guanabara: ocupação histórica e avaliação ambiental. Rio de Janeiro: Editora Interciência, 2013.
10 MACHADO, Giselle Cardoso. Da Ilha de Sapucaia ao Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho: a criação de territórios do lixo da cidade do Rio de Janeiro como expressão de segregação espacial. Dissertação (Mestrado em Geografia). Departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012.
11 LIMA, Maria Raquel Passos. O Avesso do lixo: materialidade, valor e visibilidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021.